O golpe dos bolcheviques deu início a um experimento humano gigantesco. Queria-se construir uma nova sociedade sem dominação, sem classes e justa, realizando aquilo que os filósofos e poetas no Ocidente apenas teriam sonhado: a saber, criar o “novo homem”.

O Orfanato-Laboratório Detski Dom

Em março de 1921 foi fundada em Moscou a Associação Psicanalítica para a Pesquisa da Criação Artística. Seu nome lembra que o freudismo não era, em primeira linha, uma questão de médicos e psicólogos, mas objeto de um discurso público do qual participavam intelectuais, poetas, atores, pedagogos e revolucionários de profissão. Entre os associados podem ser encontrados professores e funcionários proeminentes. Um exemplo disso seria o professor de matemática Otto Schmidt (1891-1956), que viabilizou, na condição de diretor da editora estatal Gossidat, o surgimento de uma biblioteca de psicologia e psicanálise, com obras de Sigmund Freud, Anna Freud, Karl Abraham e outros. É digno de nota que os temas das palestras vespertinas eram neutros de um ponto de vista político: “Estátuas de deuses do rio”, “Sobre os vasos gregos”, “A melancolia de Dürer” ou “Relações da erótica tátil com ornamentação de tapetes”.

Alexander Bernstein (1820-1922), diretor da Clínica Neurológica de Moscou, também pertence aos membros fundadores da Associação. Quando, em maio de 1921, ele fez um requerimento para a instalação de um orfanato de psicanálise para crianças saudáveis em idade pré-escolar, foi-lhe imediatamente concedido. Apenas três meses depois, o Orfanato-Laboratório Detski Dom passou a funcionar sob direção de Ivan Ermakov (1875-1943).

O objetivo do Detski Dom era o “ensino de uma personalidade de valor social no coletivo”, como pode ser visto no rascunho, escrito à mão por Ermakov, de um relatório sobre o orfanato. Suas tarefas científicas seriam “as observações conduzidas metodicamente”, assim como a elaboração de métodos para a profilaxia da neurose. A psicanálise, continua o documento, é o “método mais efetivo de libertação de uma humanidade lacerada de seu confinamento social”. Enquanto Ermakov atuava como dirigente oficial, a direção organizacional e a responsabilidade prática de fato ficavam com a pedagoga Vera Schmidt.

Vera Schmidt nasceu em 1889 em Starokonstantinov, hoje Ucrânia. Seus pais eram médicos. Vera Schmidt frequentou cursos de alta formação de mulheres em Petersburgo. Em 1913, casou-se com o matemático Otto Schmidt. O casal mudou-se para Moscou, onde, de 1918 a 1920, atuaram no Departamento do Sistema de Ensino do NarKomPros. Schmidt dirigirá o Orfanato-Laboratório até o seu fechamento.

O lar foi disposto no segundo andar da imponente Riabuschinski-Villa, na Rua Pequena Nikitskaia. No início, viviam ali trinta crianças, separadas em três grupos de acordo com suas idades. Os educadores eram comprometidos com uma série de princípios: não podia haver punição; sequer uma vez era permitido falar alto com as crianças. Avaliações subjetivas da criança também não eram permitidas. Deveriam ser avaliadas não as próprias crianças, mas os resultados dos seus atos — como designar bonita ou feia uma casa construída por uma delas. Eram toleradas manifestações sexuais das crianças, como a onania. Quando elas brigavam, não se repreendia quem havia insultado, mas se lhe contava a dor que causara no outro.

Vladimir Schmidt, o filho de Vera e de Otto Schmidt, também vivera no Detski Dom. Em uma entrevista ele relatou que:

Raramente deveríamos estar em casa. Era um lar […]. Uma de minhas lembranças mais vivas são essas janelas enormes. […] Era esse quarto aqui, claramente, o que dormíamos. Sete caminhas cabiam facilmente aqui. Ao lado era o quarto de brincar […]. Os educadores estavam sempre presentes, mas para nós eles não eram educadores; era normal que minha mãe estivesse aqui e todos os sete a chamassem de “mamãe”.

Mas era com cubos de madeira no chão que as crianças mais gostavam de brincar. Elas gostavam muito do chão, além disso, porque em casa era proibido brincar nele: “Nesse orfanato as emoções e as iniciativas das crianças normalmente não eram reprimidas”. Ao contrário, os educadores permitiam que todas elas se desenvolvessem livremente; faziam observações, escreviam diários, tiravam fotos.

Vera Schmidt publicava sobre o Orfanato-Laboratório em revistas de psicanálise, e se correspondia também com Melanie Klein e Anna Freud. Nesse ínterim, os colegas moscovitas conseguiram expandir a área de atuação. No outono de 1922, foi fundado o Instituto Estatal de Psicanálise e a Sociedade Psicanalítica Russa (RPSAO). Um ano depois, foi aberto um ambulatório de psicanálise.

 

 

No outono de 1923, Vera e Otto Schmidt viajaram para encontrar Abraham em Berlim e Freud em Viena, com o intuito de obter uma inclusão provisória do RPSAO na Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Ao voltarem a Moscou, contaram do vivo interesse dos colegas ocidentais pela atividade do instituto moscovita e pelo Orfanato-Laboratório. Foi especialmente intensa a forma como se discutiu a relação da educação coletiva com a psicanálise, bem como a questão sobre como lidar com o complexo de Édipo na educação coletiva.

Analistas de esquerda, como Otto Fenichel e Wilhelm Reich, viajaram, por sua vez, para a Rússia para descobrir como avaliar a situação soviética. As opiniões variaram bastante umas das outras. O psicanalista vienense Richard Sterba fez um relato de um debate intenso em uma das conferências de quarta-feira em 1929 ou 1930. Reich, que também era comunista, intercedera com veemência pelo experimento russo de produzir um ser humano coletivo, sem neuroses [neurosenfreien]. Mas Freud sustentara, em oposição, o seguinte:

[Reich] afirma que, no momento em que se abolirem de modo consequente, na Rússia, os casais e as famílias, não se produzirá mais complexo de Édipo e, portanto, não haverá mais neurose. Isso poderia ser comparado a quando se lida com uma constipação intestinal, obrigando o paciente a parar de comer e a enfiar ao mesmo tempo uma rolha no seu ânus […]. E mais, devemos dizer que o complexo de Édipo não é a causa específica do surgimento da neurose. Não há causa única, específica, da etiologia da neurose.

 

 

Freud termina a discussão de modo enérgico, o que não lhe era comum: “no momento é impossível dizer algo sobre o significado do experimento russo. Ninguém pode dizer algo antes que essas crianças façam 13 anos de idade. Sugiro que essa discussão continue daqui a treze anos”.

No momento desse debate, o Detski Dom já não existia mais. Em todas as tentativas de legitimação dos freudianos, o Orfanato-Laboratório se manteve intensamente controverso durante o tempo de sua existência. Desde o início, o entorno fazia calúnias sobre abusos sexuais. Foi provado mais de uma vez por comissões de inspeção que, como um todo, se deveria julgar positivo o trabalho no Orfanato. Ocorre que na União Soviética não havia demanda para um projeto como esse.

O resto da vida de Vera Schmidt é menos conhecido. De 1925 a 1929, trabalhou no Instituto da Função Neural Auditiva da Academia Comunista em Moscou; a partir de 1930, no Instituto de Defectologia Experimental, um campo científico soviético, no qual procuraram refúgio antigos psicanalistas de diferentes tipos. Em 1937, Vera Schmidt morre aos 48 anos na prisão.

Cf. KÜHN, R. (2000) Interview mit Vladimir Ottovitch Schmidt, Moskau; pp. 13-20 [Manuscrito não publicado]. Com a permissão amigável de Regine Kühn e Dr. Eduard Schreiber, Berlim — os diretores do filme Trotzkis Traum: Psychoanalyse im Land der Bolschewiki [O sonho de Trotski: a psicanálise na terra dos bolcheviques], Arte 2001. Cf. Korrespondenzblatt der Internationalen Psychoanalytischen Vereinigung (1924) Russische Psychoanalytische Gesellschaft. Sitzungsbericht der Russischen Psychoanalytischen Gesellschaft vom 18. Oktober 1923, IZP X, p. 114. STERBA, Richard (1982) Reminiscenses of a Viennese Psychoanalyst. Detroit: Wayne State University Press; pp. 111-ss. STERBA, Richard (1982) Reminiscenses of a Viennese Psychoanalyst. Detroit: Wayne State University Press; pp. 111-ss. MEIER, S. (2017) Comunicação oral. Berlin, 7 de agosto de 2017.

 

 

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Escritor. Colunista. C.E.O. do site direitacapital.com. JORNALISTA. Diretor de imprensa.

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